Maria Leite e Paolo Vicente: os dois ajudam a restaurar imóvel e falam do prazer de voltar ao mercado de trabalho – Fernando Lemos / Agência O Globo
RIO — No fim do século XIX, onde hoje fica o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, funcionava o Hospício dos Alienados, primeiro espaço para o tratamento de doentes mentais do país e da América Latina, fundado por dom Pedro II. Em 1949, a construção em estilo neoclássico, inspirada em outros hospitais europeus, foi transformada em universidade. Mas ainda hoje a área abriga instituições de estudo ou atendimento de pacientes psiquiátricos, como o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Franco Basaglia, o Instituto Philippe Pinel, ambos da Secretaria municipal de Saúde, e o Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Esse passado veio à tona quando a empresa que está restaurando o Palácio Universitário — que inclui a capela de São Pedro de Alcântara, que pegou fogo em 2011—, dentro do campus, teve que cumprir a lei de cotas (que obriga a contratação de funcionários com deficiência): a construtora foi buscar mão de obra em ambulatórios de saúde mental.
Atualmente, quatro dos 50 operários que batem ponto no canteiro de obras da UFRJ têm algum problema psíquico, como esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva ou depressão. Contratados como serventes, os quatro — duas mulheres e dois homens — têm trabalhado nos serviços de pintura, lavagem de telhas, decapagem de gradil e recuperação da cantaria (pedras usadas no revestimento). Eles estão aprendendo o ofício de restauração no canteiro de obras da Biapó, empresa especializada em obras em prédios históricos e tombados. Iniciada em outubro de 2014, a empreitada inclui o reparo de telhados e fachadas de todo o Palácio, incluindo a capela. O trabalho deve terminar no ano que vem. Um dos orgulhos do quarteto foi a restauração do lago da Escola de Comunicação da UFRJ, devolvido à comunidade acadêmica após um delicado trabalho de reconstrução.
— Aqui nós fizemos um trabalho muito bonito — mostra Rejane Alves Clemêncio, observada de perto pelos colegas Estácio Bahia, de 39 anos, e Simon Paolo Valente, de 28, que também fazem parte do programa de cotas.
Preconceito é uma barreira
Moradora do Complexo do Alemão, Rejane, de 48 anos, frequenta o Caps João Ferreira Filho, em Ramos, e há um ano e quatro meses foi escolhida para se juntar à equipe da UFRJ. Ela conta, sorrindo, que, além do laguinho da Escola de Comunicação, ajudou a refazer os dois cachepôs de uma das portas do prédio e preparou as pedras que arrematam a fachada. A vontade de trabalhar surgiu junto com a necessidade de ajudar no sustento da casa.
— Fui diagnosticada como bipolar e com síndrome do pânico e não saía de casa para lugar nenhum há três anos. Hoje eu vou para o trabalho e volto para casa sozinha, e me sinto aceita como eu sou — diz ela, que já conseguiu comprar eletrodomésticos e reformar o banheiro da casa, e ainda paga a escola do neto.
O desejo de voltar ao trabalho, explicam os psicólogos, é um processo evolutivo natural. O paciente inicia o tratamento e, à medida que vai se sentindo melhor, quer ser reinserido na sociedade. Mas o preconceito ainda é uma barreira. De acordo com a Superintendência de Saúde Mental da Secretaria municipal de Saúde, em 2016, havia 130 pacientes trabalhando com carteira assinada na cidade.
— Eles se sentem reinseridos. E passam a ter autonomia para sustentar suas escolhas na vida. É um projeto ousado e cuidadoso ao mesmo tempo — diz o psicólogo Conrado Tapajós, coordenador técnico do Caps Franco Basaglia.
A baiana Maria Leite, de 37 anos, em tratamento no Caps Franco Basaglia, já havia trabalhado em bares, hotéis e como faxineira. No novo emprego, ela tem adorado as aulas de educação patrimonial. Há seis meses na empresa, identificou-se tanto com a história do prédio que pesquisou, por conta própria, o passado do lugar. O interesse pelo tema lhe valeu um convite para ser a guia de uma exposição que, por dois meses e meio, abriu as portas do canteiro à visitação.
— Descobri que, no passado, as mulheres que traíam o marido ou queriam trabalhar eram trancadas no hospício — ensina Maria.
Para contratar, a construtora fez uma exigência: o funcionário não pode interromper o tratamento médico. Segundo o engenheiro Jorge Campanha, da Biapó, esta foi a primeira vez que a empresa contratou pacientes psiquiátricos, mas já faz parte da tradição da construtora inserir nas obras pessoas com deficiência que tenham alguma relação com a história do edifício a ser restaurado.
— Fizemos a restauração do prédio do Instituto Benjamin Constant e contratamos deficientes visuais. E, na obra do Instituto Nacional de Educação de Surdos, contratamos deficientes auditivos. Aqui, temos um novo desafio, que é adequar estas pessoas ao nosso trabalho. Eles têm muita chance de inserção no mercado, porque não é nada fácil achar um pedreiro especialista em trabalhar com argamassa de cal e areia e pinturas de prédios tombados — diz o engenheiro.
Na avaliação da psicóloga Catarina Dahl, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, um dos maiores benefícios está sendo o resgate da cidadania.
— Eles passaram a ter direitos trabalhistas; adquiriram poder aquisitivo, chegando a ajudar na renda familiar; começaram a cuidar mais de si, da saúde; a preocupar-se com vestimenta; também passaram a circular em outros territórios e a fazer novos circuitos na cidade. É um tipo de trabalho que não dissocia o trabalho manual do trabalho intelectual. A experiência vem possibilitando novas vivências aos usuários-colaboradores, no sentido de darem no significado à própria história — muitas vezes marcada pela estigmatização, violação dos direitos humanos e exclusão social — e de viverem a vida com um pouco mais de esperança. — analisa Catarina, acrescentando que a contratação dos pacientes foi alinhavada num projeto, batizado de “Feito com as mãos: Inclusão de Usuários de Saúde Mental na Obra de Restauração do Palácio Universitário”.